Durante boa parte da última década, a paulista Rosana Martinez, 62, viveu com sintomas para os quais nenhum médico conseguia dar uma resposta.
O que começou como calor intenso e alergia após o banho evoluiu para rubor no rosto, estufamento, dor de estômago, taquicardia, falta de ar e episódios que ela descreve como um “quase infarto”.
“Eu acordava à noite sem ar, com o coração disparado. Achava que ia morrer”, conta Rosana ao g1.
Ela passou por ginecologistas, neurologistas, gastroenterologistas e realizou uma bateria de exames, mas nada aparecia. A explicação mais frequente era sempre a mesma: “deve ser menopausa”. Não era. Era um câncer raro, que se enquadrava na categoria de tumores neuroendócrinos (TNEs).
O quadro só começou a mudar depois de uma dor abdominal tão intensa que a impediu de ficar em pé e a fez correr ao pronto-socorro. A partir dali, a longa trilha até o diagnóstico começou a se desenhar.
O tumor no fígado
A primeira grande pista surgiu em uma ressonância magnética: um tumor de 5 cm no fígado. O achado assustou, mas não resolvia o enigma. A biópsia descreveu o tumor como neuroendócrino, mas esse tipo de câncer raramente têm origem no fígado –e, por isso, ele provavelmente era uma metástase. O problema é que nem o exame de imagem mais completo, o PET-CT, apontava a origem daquele tumor.
"O médico me disse: 'Se o tumor primário for no fígado, vamos escrever um artigo, porque seria extremamente raro'”, conta.
Um PET-CT específico para tumores neuroendócrinos trouxe finalmente a resposta: o tumor original estava no intestino delgado e tinha apenas 1 cm, pequeno demais para ter sido detectado antes.
Rosana passou por cirurgia, retirou o tumor intestinal e parte do fígado, e voltou para casa com a recomendação de fazer exames periódicos para vigiar a possibilidade de recidiva.
O que são tumores neuroendócrinos e por que confundem tanto
Os tumores neuroendócrinos (TNEs) se originam de células chamadas neuroendócrinas, responsáveis por fazer a ponte entre o sistema nervoso e o sistema hormonal. Elas estão espalhadas por vários órgãos –especialmente intestino, pâncreas, pulmão e estômago– e funcionam como mensageiras, liberando hormônios conforme estímulos recebidos do cérebro.
Quando se tornam cancerosas, podem produzir hormônios em excesso, criando sintomas que lembram doenças comuns. É por isso que esses tumores frequentemente passam despercebidos.
Segundo a oncologista Rachel Riechelmann, do AC Camargo Câncer Center, esse é um dos principais motivos do atraso no diagnóstico.
“Os tumores neuroendócrinos não são raros, mas são menos comuns –então não são a primeira hipótese diante de sintomas como diarreia, calorões, alergias e dor abdominal persistente”, explica a médica.
Os tumores do intestino delgado, como o de Rosana, estão entre os mais frequentes, seguidos pelos do pâncreas e do pulmão.
Nova lesão após seis anos
Tumores neuroendócrinos nem sempre seguem uma trajetória linear.
Seis anos após a primeira cirurgia, Rosana fez um novo PET, que identificou uma lesão no retroperitônio, área profunda do abdômen. Ela buscou avaliação do oncologista que a acompanhava e operou mais uma vez. A remissão durou até 2022.
Naquele ano, a mancha retroperitoneal voltou a aparecer, muito pequena. Dessa vez, a equipe médica optou por uma alternativa sem cirurgia: injeções mensais de análogos de somatostatina, medicamentos que bloqueiam hormônios produzidos pelo tumor e retardam seu crescimento.
Foram três anos seguidos de tratamento. Hoje, ela está sem medicação e apenas em acompanhamento, com exames a cada seis meses.
“Meu tumor está quietinho, controlado. É só uma manchinha”, afirma.
O mecanismo dos TNEs
Alguns TNEs produzem serotonina e outras substâncias que causam a chamada síndrome carcinoide, condição em que o excesso desses hormônios provoca diarreia crônica, vermelhidão súbita no rosto, sensação de calor e palpitações.
“A serotonina causa diarreia crônica e calor. Muitas mulheres são investigadas como menopausa e perdem tempo até chegar ao diagnóstico correto”, diz o oncologista do grupo Oncoclínicas e da Americas Health Foundation, Stephen Stefani.
O médico explica que tumores neuroendócrinos formam um grupo muito heterogêneo. Alguns são altamente agressivos. Outros crescem tão lentamente que acompanham o paciente por décadas.
A agressividade é medida pelo Ki-67, marcador que indica quantas células do tumor estão se multiplicando.
“Acima de 20%, é um tumor agressivo. Abaixo de 2%, é muito lento e costuma ter bom prognóstico”, explica o oncologista.
Rosana tem tumor de crescimento lento, que pode recidivar, mas responde bem a tratamentos e acompanhamento.
Por que o diagnóstico costuma demorar
Ao contrário de outros tipos de câncer, os TNEs não têm exames de rastreamento e não costumam aparecer em ultrassons ou endoscopias comuns. O diagnóstico depende de:
PET-CT específico para tumores neuroendócrinos,
ressonâncias e tomografias de alta resolução,
biópsias com marcadores típicos,
avaliação de hormônios produzidos pelo tumor.
Como é o tratamento
A abordagem depende do tamanho do tumor, do local, da produção hormonal e da presença de metástases. As opções incluem:
cirurgia, quando é possível remover o tumor;
análogos de somatostatina, que controlam hormônios e freiam o crescimento;
radiofármacos, usados quando o tumor apresenta receptores específicos;
terapias-alvo e imunoterapia, de acordo com o perfil molecular;
embolização e até transplante de fígado, em casos específicos de metástases hepáticas.
Segundo Stefani, muitos pacientes têm bons resultados.
“Há chance alta de cura em vários casos. É uma doença que permite tratamento personalizado”, afirma.
Apesar da complexidade do tratamento, Rosana conseguiu retomar a rotina. Hoje, vive sem sintomas e segue apenas em vigilância, com consultas e exames a cada três meses.
A decisão de pausar os medicamentos, segundo os médicos, foi possível justamente pelo comportamento lento do tumor e porque os efeitos colaterais começavam a pesar mais do que os benefícios.
“Eu sei que vou acompanhar isso para o resto da vida, mas estou bem. Voltei a respirar, a dormir e a viver bem”, afirma.
Fonte: G1
Foto: Arquivo Pessoal

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