Mercado de receitas médicas e atestados falsos cresce nas redes sociais e Telegram

Foto: Reprodução/TV Globo

O cardápio é variado. De hipnóticos para dormir até inibidores de apetite, o mercado de receitas médicas e atestados falsos nas redes sociais oferece produtos para todos os gostos. Os valores mudam conforme a necessidade e o tipo de receita, com a quantidade de dias dos atestados e, no caso da venda de medicamentos, com o tipo de substância.

O g1 acompanhou por dois meses o universo digital onde receitas médicas, medicamentos e atestados falsos são vendidos ilegalmente. Mercado esse que cresceu 20 vezes em sete anos no Telegram. O problema é tão grande que tem forçado a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e o Conselho Federal de Medicina (CFM) a pensarem soluções para brecá-lo.

Encontrar os vendedores é fácil: basta um clique no Telegram para as opções se derramarem sobre a tela. No Facebook e Instagram, há inclusive anúncios patrocinados de documentos médicos falsos, enquanto no X e TikTok os vendedores anunciam seus produtos em postagens e comentários.

Vendedores no X usam fotos e nomes falsos. Deixam, entretanto, um número de WhatsApp à disposição. Ao entrar em contato, o cliente recebe instruções –e a garantia de que a receita será aceita em farmácias.

Receitas brancas, usadas para medicamentos comuns sem controle especial, custam R$ 30 e são preenchidas, carimbadas e assinadas pelos vendedores, com QR Code ativo.

O QR Code direciona para um documento muito similar a um original, com dados do médico prescritor e data de prescrição. Na maioria das vezes, o médico que assina o documento falso não é do estado onde mora o cliente, e o próprio vendedor explica: “Não há necessidade de o médico e nem da clínica serem do seu estado”.

É uma forma de dificultar a identificação do profissional por farmácias. Segundo o Conselho Federal de Medicina (CFM), na maior parte das vezes os médicos sequer sabem que seus dados estão sendo usados de forma ilegal.

Com receitas coloridas –azuis, exigidas para psicotrópicos de uso controlado e amarelas, destinadas a entorpecentes e remédios de uso mais restrito—, o modus operandi da venda é diferente. O vendedor envia um PDF da receita virgem, para que o próprio cliente preencha. Essa receita é vitalícia, e custa mais caro, R$ 70. Ao comprar, o usuário pode reeditá-la quantas vezes quiser.

Para esse tipo de prescrição, também há instruções: o vendedor envia um documento preenchido para o cliente ter como referência. “Altere os seguintes dados: data, nome completo, dosagem e nome do medicamento”, explica. “Assine em cima do carimbo”, conclui.

É o próprio comprador quem imprime a receita. Para a impressão, é enviado um passo a passo que ensina desde a forma de posicionar o documento na folha até o tipo de papel em que ela deve ser impressa.

“A receita é válida em qualquer estado, independentemente de onde foi emitida. As farmácias são obrigadas a vender”, explica o vendedor. “Para garantir a aceitação, prefira farmácias menores, pois costumam ter menos burocracia”.

“Evite farmácias grandes, algumas aceitam, mas é mais seguro optar por pequenas. Se uma farmácia recusar, tente outra. A receita está correta e dentro da legalidade, então dificilmente haverá problemas", diz.

Feedbacks são importantes

Ao encerrar a venda, o vendedor pede que o cliente dê feedback sobre o uso do documento. É por meio desses retornos que ele faz propaganda do negócio – também nas redes sociais. “Mais um cliente satisfeito”, diz uma publicação no Telegram.

Por lá, a abordagem varia. Alguns grupos são configurados de modo que apenas o administrador envie mensagens, com a venda sendo finalizada em conversas privadas. Outros ficam abertos, e, nesses casos, é por ali que os usuários enviam os feedbacks.

Além disso, no chat coletivo, interessados perguntam sobre medicamentos específicos, sobre como funciona o esquema de receitas e qual o máximo de dias que os vendedores podem inserir em um atestado médico.

“Quatro dias de férias", comenta um membro do grupo ao enviar uma foto viajando e agradecendo ao proprietário do canal onde são vendidos os atestados falsos.

Em um dos grupos mais acessados no Telegram, são mais de 6 mil participantes. A descrição explica o intuito e também detalhe quais produtos são vendidos. “RECEITAS MÉDICAS, ATESTADOS, LAUDOS E EXAMES. Use o grupo para tirar suas dúvidas, solicitar serviços e buscar referências. Nosso trabalho é sério e de responsabilidade, estamos sempre de prontidão, entrega rápida e segura”, afirma o texto descritivo do grupo.

Para os atestados falsos, o usuário tanto pode decidir o CID – código da doença responsável pelo afastamento– ou deixar que o vendedor decida. Uma vez escolhido o problema, ele determina por quantos dias quer ficar fora do trabalho.

O levantamento exclusivo do g1 feito pelo pesquisador Ergon Cugler, do Laboratório de Estudos sobre Desordem Informacional e Políticas Públicas (DesinfoPop/CEAPG/FGV), encontrou 28 mil usuários inseridos em comunidades de vendas de receitas e atestados falsos.

Em 2025, até julho, esses conteúdos já foram visualizados quase meio milhão de vezes —segundo dados que podem ser vistos na própria plataforma.

Anvisa e CFM tentam mitigar o estrago

Na tentativa de frear esse comércio, em julho, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) adotou um sistema nacional para emissão e controle de números de receitas de medicamentos sujeitos a controle especial.

Funciona como um “cartório” digital: cada número é gerado pela Anvisa e vinculado a um médico, permitindo verificar se a receita existe e se foi emitida por um profissional autorizado.

Agora, o órgão testa uma nova etapa, ainda em fase piloto, que vai permitir:

Conexão: plataforma vai conectar esse sistema diretamente aos programas de prescrição digital usados pelos médicos.

Autenticação: quando a receita for emitida de forma eletrônica, a plataforma solicitará automaticamente um número válido a Anvisa.

Checagem: na farmácia, o atendente poderá checar, em tempo real, se o documento é verdadeiro, se já foi utilizado e confirmar a identidade do prescritor.

O CFM batalha na Justiça para derrubar uma liminar que proíbe a utilização do Atesta CFM, sistema de emissão de atestados criado pelo Conselho com o intuito de mitigar o estrago feito pelo mercado digital de documentos médicos falsos.

A plataforma, que ainda não pode ser utilizada, notifica o médico sempre que um atestado em seu nome é emitido, e o profissional confirma ou não a validade do documento. A ferramenta inclui biometria, assinatura digital e integração com plataformas do governo. O imbróglio judicial envolve empresas de tecnologia, que alegam que o CFM tenta monopolizar o processo.

O que dizem as plataformas

O g1 explica aqui como esse mercado funciona. A reportagem acionou o Telegram, mas não obteve resposta. A empresa não tem sede nem representante legal no Brasil, o que dificulta ações judiciais e impede o cumprimento de decisões locais.

Também foram procurados Google, Meta e X, que não responderam aos questionamentos. Já o TikTok afirma que tem “um time robusto de Segurança, que combina tecnologia e trabalho humano (mais de 40 mil profissionais) para localizar e remover qualquer conteúdo ou interação que possa ser relacionada a comportamentos nocivos. Continuamente identificamos e removemos conteúdos e perfis que violam nossas Diretrizes da Comunidade e nossas Políticas de Anúncios”.

Fonte: G1